Quando se julgava perdido para sempre, dois investigadores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa identificaram no Archivio Storico della Pontificia Università Gregoriana (PUG), em Roma, o manuscrito original da Clavis Prophetarum (Chave dos Profetas), do Padre António Vieira S.J..
Ana Travassos Valdez, Investigadora Principal do Centro de História da Universidade de Lisboa, e Arnaldo do Espírito Santo, Professor Emérito da Universidade de Lisboa são os responsáveis pela identificação do original desta obra. Integram também a equipa o Padre Martín Morales S.J., Professor Catedrático da PUG e Director do seu Archivio Storico, Irene Pedretti, restauradora e arquivista, e as conservadoras Giulia Venezia e Maria Stella Maggio.
Este manuscrito, que o Padre António Vieira considerou o seu opus magnum, constitui a chave para interpretar profetas e profecias bíblicas, que servem de fundamento para o seu tratado sobre a consumação do Reino de Cristo na terra, a que também chamou o Quinto Império.
O manuscrito original da Clavis Prophetarum e o processo da sua identificação foram apresentados numa sessão divulgada em directo (streaming) a partir do Anfiteatro I da Faculdade de Letras de Lisboa e do Archivio Storico da PUG, em Roma, no dia 30 de Maio de 2022. Na sessão estiveram presentes toda a equipa de investigação, o Reitor da Universidade de Lisboa, Professor Doutor Luís Ferreira, o Director da Faculdade de Letras, Professor Doutor Miguel Tamen, o Reitor da PUG, Professor Doutor Nuno da Silva Gonçalves S.J., a Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), Professora Doutora Helena Pereira, e o Director-geral da Brotéria, P. Francisco Mota S.J.. A gravação desta sessão está disponível nesta página.
Em entrevista à Faculdade de Letras à margem da sessão de apresentação, Ana Travassos Valdez e Arnaldo do Espírito Santo revelaram mais pormenores sobre a identificação e a importância deste manuscrito.
Mais de três séculos depois da sua morte, o Padre António Vieira continua a surpreender-nos. Eram conhecidas mais de uma dezena de cópias da Clavis Prophetarum. A primeira cópia conhecida é a do manuscrito 706 da Biblioteca Casanatense. Foi cópia elaborada por Antonio Maria Bonnucci S.J. e enviada para Roma em 1699. Mais tarde, o original que estava na Bahia foi enviado para Lisboa em 1714/15. Desse original foi feita uma descrição minuciosa pelo relator da Inquisição, P. Carlo Antonio Casnedi S.J., mas perde-se-lhe o rasto. Como é que se identificou o original no Archivio Storico della Pontificia Università Gregoriana?
Arnaldo do Espírito Santo [AES] - A identificação, como toda a investigação científica, começou por uma pergunta formulada pela Investigadora Ana Valdez, quando consultou os quatro manuscritos da Clavis Prophetarum existentes no Archivio Storico della Pontificia Università Gregoriana. Um deles, embora encadernado, apresentava características estranhas – cadernos de tamanhos variados, notas marginais com chamadas para serem inseridas no texto – que podiam sugerir tratar-se de uma obra em redacção. Mas isso não era suficiente para se afirmar categoricamente que esse manuscrito era o original do Autor. Algum tempo depois de regressar a Lisboa, já começado o ano lectivo de 2019/2020, repetiu-me a pergunta que fizera a si própria: “Não será aquilo o original da Clavis ?” Enfim, para encurtar pormenores descritivos, fomos a Roma analisar o manuscrito. Em 1999 eu tinha escrito um artigo para um volume de homenagem a David Mourão-Ferreira, Margarida Vieira Mendes e Osório Mateus com o título «Pontos de vista sobre o original da Clavis Prophetarum ». Neste artigo, chamei a atenção para o seguinte parágrafo:
A terceira referência de interesse editorial é aquela em que Casnedi afirma: «No tratado da pregação universal do Evangelho, no segundo caderno do autor, segunda página, leio estas palavras acrescentadas na margem: Estas considerações acerca do pecado filosófico já foram expungidas em outro exemplar por causa de um decreto de Alexandre VIII, que condena uma opinião desta natureza, muito tempo depois de elas terem sido escritas pelo Autor.» [1]
[1] «In tractatu de universali Evangelii praedicatione, in secundo authoris quaternione pagina secunda, lego in margine adjecta haec verba: ‘Haec de peccato philosophico expuncta jam sunt in alio exemplari ob decretum Alexandri Octavi hujusmodi opinionem damnantis, multo post haec scripta ab authore’.» (Obras Escolhidas, IX, p. 230).
Quando chegámos ao Arquivo, estabelecemos um plano de trabalho sistemático e rigoroso que consistiu em fazer o registo pormenorizado de todos os cadernos. Já próximos do dia regresso, para ter a certeza da página citada por Casnedi, ainda pedi à nossa colega Professora Cristina Pimentel que me enviasse cópia do meu artigo, que acabou por ser enviado pela colega Professora Isabel Almeida. Mas regressámos sem termos conseguido identificar a segunda página do segundo caderno do «Tratado da Pregação Universal». Fizemo-lo na segunda jornada de trabalho, exactamente no dia 20 de Fevereiro, dia em que, em reunião com o Reitor da Universidade Gregoriana, Padre Nuno da Silva Gonçalves S.J., o Director do Arquivo, Padre Martín Morales S.J., a Arquivista, Irene Pedreti, demonstrámos que, sem dúvida alguma, aquele era o manuscrito Original da Clavis Prophetarum do Padre António Vieira, que fora encerrado num baú à sua morte em Julho de 1697 e enviado para Lisboa em 1714.
Como é que foi possível passar despercebido a tantos investigadores?
Ana Valdez [AV] - Honestamente, não sabemos. Sabemos que o manuscrito fazia parte do catálogo do Archivio Storico da Pontifícia Universidade Gregoriana, pelo que não estava escondido, e que foi várias vezes à sala de leitura. Mas, na realidade, desde há muito tempo que o tradicional era utilizar os mss. 354 e 359 da Gregoriana e o 706 da Casanatense para estudar a Clavis Prophetarum, além de se considerar o original perdido. Ninguém estava à sua procura.
Três dias depois da morte de Vieira, os seus papéis são metidos dentro de uma arca, com duas fechaduras. Essa arca foi arrestada pela Inquisição portuguesa, que mandou fazer uma avaliação do conteúdo da Clavis Prophetarum. A obra acaba por surgir em Roma? Como e quando?
AV - Não sabemos, não temos dados suficientes para responder a essa pergunta. Talvez a continuação da análise do manuscrito nos venha a fornecer elementos que nos permitam vir a esclarecer algumas dessas questões.
Este manuscrito é a chave para interpretar as profecias bíblicas e o Apocalipse. Qual é o essencial do pensamento de António Vieira S.J. na Clavis Prophetarum? É uma visão consentânea com a ortodoxia da Igreja?
AES - Sim, é um facto que o título da obra quer dizer isso mesmo: Clavis, Chave, porque permite abrir o sentido das profecias do Antigo Testamento e das visões do Apocalipse, expressas numa linguagem misteriosa e obscura. Mas na verdade o pensamento de Vieira é devedor em grande medida de muitas outras fontes: da teologia paulina, da patrística, dos exegetas de todos os tempos e muito especialmente dos seus contemporâneos: Cornélio Alápide S.J. (Cornelissen van den Steen), 1567-1637, Benedetto Giustiniani S.J., 1541-1632, Denis Petau S. J., 1583-1652, Francisco Foreiro O.P., 1522-1581. Podíamos referir mais umas dezenas de comentadores que leu e citou. Há uma utilização deliberada de comentários às epístolas paulinas. De facto, a grande visão de Vieira sobre os tempos do fim, a escatologia, assenta na recapitalação, digamos, na renovação ou reunificação de todas as coisas em Cristo, as dos céus e as da terra, como se lê na Carta aos Efésios. Esta é a linha essencial do pensamento de Vieira. Cristo é o alfa e o ómega, o princípio e o fim de todas as coisas. Tudo há-de convergir para a Consumação do Reino de Cristo na Terra, título alternativo que Vieira deu à Clavis Prophetarum. Esta visão de Vieira está dentro da mais pura ortodoxia católica. É certo que alguns censores do Casanatense não lhe pouparam a sua proposta de solução do problema judaico, que procurava integrar na igreja os judeus ainda que judaizassem, isto é, praticassem os ritos que Deus lhes ordenara no Antigo Testamento e que Cristo e os Apóstolos continuaram a praticar depois da Ressurreição e do Pentecostes. Mas nem a doutrina sobre a salvação daqueles que não foram baptizados por não terem quem lhes pregasse o Evangelho causou obstáculos à maioria dos censores. Com a expansão da Igreja pelo Novo Mundo e pelo Oriente tornava-se clara a não imputabilidade da culpa onde havia ignorância invencível, isto é, inultrapassável. Com isso, o universalismo de Vieira estendia-se aos povos do Brasil e de África, onde os missonários iam chegando muito lentamente.
É mais do que o Quinto Império da História do Futuro?
AV - É diferente. O Quinto Império defendido por António Vieira na História do Futuro e na carta enviada a D. Luísa de Gusmão, Esperanças de Portugal, era um império terreno liderado pelo monarca português. Vieira claramente identifica Portugal como o verdadeiro sucessor do Império Romano, ou seja, como o povo escolhido que deveria liderar a Cristandade até ao Reino de Deus na Terra. Mais, Vieira identifica o monarca português escolhido como Último Imperador como sendo o defunto D. João IV, escrevendo que, tal como Bandarra tinha previsto, D. João ressuscitaria quando o tempo fosse certo. É isso que obviamente é considerado herético pela Inquisição Portuguesa e que leva a que Vieira seja condenado e privado de voz activa e passiva em 1667. Na Clavis, tanto a audiência como o tom são diferentes. Primeiro, estamos perante um tratado sobre o estabelecimento do Reino de Deus na Terra tal como prometido na Bíblia, pelo que Vieira analisa todas as fontes e análises que foram sendo feitas ao longo dos séculos. Depois, Vieira escreve para os seus pares em Roma, pelo que não há qualquer menção do rei de Portugal, só do Papa enquanto líder espiritual e temporal.
É previsível que ao estudarem agora o manuscrito original se descubra uma Clavis Prophetarum diferente da que consta nas cópias já conhecidas?
AV - É provável que pelo menos alguns aspectos textuais e até da estrutura da obra venham a revelar diferenças que apontem para outros aspectos da interpretação da obra.
O que representa esta descoberta no contexto do estudo da obra do Padre António Vieira S.J.?
AES - Não cremos que o essencial do pensamento de Vieira possa ter sido alterado pelas cópias que conhecemos. Mas há pormenores que variam de cópia para cópia. Há uns manuscritos que chamam ao Papa dos últimos tempos «Pastor Angélico», outros «Pastor Evangélico». Não é a mesma coisa dizer-se de um santo que era um homem de «Letras e silêncios», em vez de que era um homem «de letras e ciências», nem que São João Bptista andava vestido «de cordas» ou de «cerdas». A cultura exige rigor e tempo. Só uma edição crítica que compare rigorosamente o original com as cópias que transmitem um texto censurado, às vezes pelo próprio Autor, poderá dizer qual é a dimensão e o significado de se fazer uma leitura do texto de Vieira como ele o escreveu. Damos mais um exemplo. Vieira utiliza a Monarchia de Dante, sem nunca o referir explicitamente. Seria uma descoberta de grande interesse se o nome de Dante aparecesse, ainda que riscado, no manuscrito original. Tudo isto nos leva ao seguinte: há páginas que estavam escritas e que foram recobertas com outra folha colada com cola feita com farinha de mandioca. Qual será o motivo que levou a suprimir um texto e substituí-lo por outro? A Filologia e os estudos literários não se compadecem com madurezas. Requer-se um trabalho sério e atento, demorado; porque os portugueses, mesmo os que não são literatos, merecem todo o respeito.
A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a Associação para o Desenvolvimento da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (ADFLUL), o Centro de Estudos Clássicos (CEC) e o Centro de História (CH-ULisboa) tiveram um papel fundamental no financiamento das viagens dos investigadores a Roma e do restauro do manuscrito original da Clavis Prophetarum?
AV e AES - Sim, com certeza, sem o seu apoio e financiamento este trabalho que ainda só agora começou não teria sido possível. Estamos muito gratos a todos e esperamos que nos continuem a apoiar.
Quando e como vai ser feita a edição crítica, incluindo a respectiva tradução?
AV - A edição crítica está em curso desde que nos foi facultado acesso a uma cópia digitalizada do manuscrito. Aliás, foi isso que nos permitiu adiantar trabalho ao longo destes anos de pandemia durante os quais não pudemos viajar. Não é, no entanto, um trabalho que se possa dizer que vai estar pronto daqui a três meses, mas também não vai demorar dez anos. É um trabalho que requer muita minúcia e cuidado ao transcrever o texto manuscrito, a que se junta o trabalho de tradução e a composição de um aparato crítico que se quer muito sério e completo. É que vai ser a primeira vez que a Clavis Prophetarum se edita a partir do original. Tudo aquilo que temos antes, nomeadamente a edição de 2000 da INCM, foi feito a partir de cópias da Clavis. Este manuscrito, por ser o original, representa um game changer.
Programa »
Apresentação: João Maia Abreu
Tradução: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Pontificia Università Gregoriana
Tradução para legendas e legendagem ao vivo: Joana Frazão
Emissão em streaming e gravação da Sessão: AVK
Texto e Entrevista: Tiago Artilheiro (FLUL-DREI, Núcleo de Imagem e Comunicação)
Fotografia Manuscrito: Archivio Storico della Pontificia Università Gregoriana (APUG) / Direitos Reservados
Fotografia Sessão: Ricardo Ascenção e Tiago Artilheiro (FLUL-DREI, Núcleo de Imagem e Comunicação) / Direitos Reservados